perfil

Roberta Sudbrack conta histórias para comer

Como o Sud, o pássaro verde ser tornou um dos grandes restaurantes do Brasil 

 

Tudo começou cinco anos atrás. “Avisa para a Roberta que essa sempre foi uma casa de gostosuras.” Assim estava escrito no bilhetinho que a antiga moradora do lugar deixou para a cozinheira, pouco antes de chegar com mala e cuia por ali. Ela é a bisneta do Visconde de Carandaí, sujeito que dá nome à rua pequenina, no charmoso bairro do Jardim Botânico, no Rio, repleta de casinhas fofas, como antigamente. 

 

 

É aqui, no número 35, onde Roberta Sudbrack decidiu fincar raízes para novamente bater asas, depois do fechamento do seu celebrado restaurante de alta gastronomia. 


O Sud, o pássaro verde (nome dado a partir de uma maçaneta metálica em forma de pássaro, trazida da França) não tem placa na fachada – onde já se viu, diz a chef, casa com letreiro na porta? Também não tem porteiro, não tem manobrista. Se o portão estiver aberto, a gente chega e vai entrando. Num instante, depois de vencer uma rampinha, você está no salão principal, colado à cozinha. E é recebido por alguém do time enxuto, no qual todo mundo faz de tudo um pouco. Até a chef pode vir à porta dar as boas-vindas para quem chega. “A experiência aqui começa justamente pela palavra casa. Minha equipe e eu nunca chamamos de restaurante, nem de Carandaí, nem de Sud, nem de RS. Não faria nenhum sentido aqui.” 

 


O clima por aqui é descontraído, de fato. Com uma elegância sutil. O salão tem apenas 12 mesas e, ao longo dele, uma prateleira corrida de madeira suporta inúmeras pilhas de pratos de porcelana – muito mais do que poderiam ser postos às mesas. 

Na primeira quina, taças de vidro repousam sobre um aparador de meio metro de altura. Mais à frente, uma cristaleira com portas de vidro abriga xícaras e bules de metal com jeitão de fazenda. E quem se senta na ponta do salão fica bem de frente para a cozinha, que é totalmente aberta, e para a grande estrela do Sud, o forno de barro a lenha, capaz de atingir altíssima temperatura. 

 

O fogo aliado a ingredientes de muita qualidade e o talento da chef são os elementos que fazem a mágica da cozinha da Roberta acontecer. “Só usamos o fogão para esquentar a água do café”.   


De volta ao forno, ele é presente do cozinheiro e amigo Federico Desseno – criador dos restaurantes uruguaios Marismo, em José Ignacio, e Cantina del Vigia, em Maldonado. “Ele faz esse forno só por amizade. Não está à venda. É produzido com uma técnica ancestral, na qual ele mesmo faz o barro. Não tem projeto, é riscado no chão mesmo”. 

No coração dele, um elemento cheio de significado. Para fazer a base do forno, Federico precisava de vidro quebrado. Roberta então deu para ele a coleção de garrafas vazias dos vinhos que um dia brilharam no RS. Incluindo aquelas cujo os rótulos tinham dedicatórias de produtores e clientes. “Eu quebrei as garrafas como uma marca do recomeço. Hoje, elas continuam comigo, mas cobertas pelo barro”. 

 

O passado, ela repete várias vezes, ficou realmente para trás. Nem o dólmã a acompanha mais – “para não me aprisionar a ele”. 

 

 

Quando recebeu a nossa equipe,  estava de verde “por pura coincidência”. À vontade. O seu bem-estar e o da sua equipe é a pedra fundamental do  trabalho. É isso, aliás, que a motivou, inicialmente, optar por um reduzido e pouco usual horário de funcionamento. 


Quando decidi romper com o modelo antigo, eu mesma não estava mais feliz. Estava num frenesi que não me dizia mais nada”. Roberta se refere também à fogueira de vaidades e ao modelo que distanciou o cozinheiro da cozinha. “Basta voltar para ela e você se depara com a sua equipe. Percebe que tem que fazer alguma coisa”. Para ela, romper com a ideia do menu-degustação. Ela própria foi uma das primeiras a adotá-la por aqui, em 2005. “Servimos dessa forma do dia que abrimos ao dia que fechamos, por 12 anos. Era uma linguagem necessária no início, para prender a atenção, para fazer as pessoas comerem um quiabo... Hoje em dia continua sendo (necessário), mas não para mim”. 

 

 

A chef acha que o cozinheiro se confundiu. Foi muita informação, muito prêmio. “Eu mesma não me dei conta disso por muito tempo. Agora a gente está precisando voltar para a cozinha e deixar o público relaxado, feliz, sem se preocupar com regras, com o que se deve vestir, ou como se deve comer”. Mas, e a ideia de jantar tão cedo, chef? “Sim, é ousado achar que as pessoas vão achar legal jantar cedo de uma hora para outra. Mas é bacana em vários sentidos: o principal é o de pensar no próximo”. Ela defende que quem está servindo também tem uma vida. “Temos que começar a pensar nisso no Brasil”. 

 

 

A preocupação, no entanto, não mexe numa das suas características principais como cozinheira: a criatividade. O cardápio do Sud, volta e meia, muda, sim, de acordo com a sazonalidade dos produtos. E o famoso arroz com frutos da terra é um ótimo exemplo disso. No entanto, sem referências óbvias do passado de haute cuisine. “A apresentação dos pratos é menos rígida, para que a pessoa nem se lembre do que ficou para trás.” As referências da trajetória da chef continua com ela, de uma forma ou de outra. “O caviar de quiabo e o tartare de abóbora, por exemplo, fazem parte da minha vida. Não vou abandoná-los inteiramente”. 

 

Deixar o passado no lugar dele não significa deixar de olhar para a própria história. Ao contrário, Roberta quer reverenciá-la. Como no cafezinho que cria o mesmo sabor do café da saudosa Vó Iracema – homenagem à avó da cozinheira. “É a lembrança mais afetiva da minha vida”. 

 

Durante o ano e meio, entre o fechamento do RS e a abertura do Pássaro Verde, Sudbrack viajou para cidades do interior, do sudeste do Brasil e da Argentina. Pesquisou formas de produção e de cozinha. A previsão inicial de abertura da casa nova era setembro de 2017, mas o projeto foi atropelado pela polêmica no Rock in Rio. No primeiro dia do festival carioca, teve seu estande ocupado pela Vigilância Sanitária, que apreendeu seu estoque de queijos e linguiças de produção artesanal (em perfeitas condições de uso, naturalmente). 

 

O episódio ajudou a acelerar a lei que viabiliza a comercialização de comida artesanal pelo território nacional. Hoje, ela vê o episódio com o sentimento de missão cumprida, mas confessa que, sim, ficou o trauma. “Meu prejuízo foi enorme. O total de produtos que foram descartados foi de quase 900 kg. Os 160 kg, divulgados inicialmente, eram apenas o estoque com o qual estávamos trabalhando no dia do evento”. Ainda é um tema caro para se lidar. “Mas está no passado. Porque esse triste episódio nos propiciou vencer uma causa que pareceria impossível.” Coma a burrata, milho assado e linguiça caseira e você vai entender exatamente do que ela está falando.

 

 

Com o Pássaro Verde abençoado por diversas entidades religiosas, postas num altar no topo da cozinha, Sudbrack quer aproximar o público fiel de sua casa dos produtores locais.  “O foco sempre é o ingrediente brasileiro, numa feliz transformação que tem elevado, cada vez mais, a sua qualidade.” Em outras palavras, Roberta ainda tem muitas histórias para contar. Ou melhor, para comer. 

 

 

Sud, o pássaro verde  – Rua Visconde de Carandaí, 35, Jardim Botânico, Rio de Janeiro – RJ